quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Actualidade e Intemporalidade do “Sermão de Santo António aos peixes”




Sermão – s.m. Discurso que o padre pronuncia no púlpito, para exortar os fieis. Prática moral. Fig. Arrazoado fastidioso. Censura importuna. Repreensão.
Dicionário de Língua Portuguesa


Sermão é um texto expositivo-argumentativo com o objectivo crítico. O Padre António Vieira, no seu sermão, utilizou a metáfora dos peixes para criticar os vícios dos homens. Quando satiriza os defeitos dos peixes, na realidade, tenta repreender os homens dos seus pecados e quando compara as qualidades dos peixes com as qualidades do Santo António tenta converter os ouvintes. Mas qual será o alcance desta crítica?
Do ponto de vista religioso a critica é intemporal, pois refere-se aos valores religiosos baseados na Bíblia e nos pecados humanos, que são eternos, infelizmente. Por um lado para a sociedade cristã Bíblia é universal e inquestionável, o que provoca o aparecimento de dogmas que servem de base para conhecimento religioso e para as normas morais. Por outro lado, os pecados humanos são intemporais, pois parece que fazem parte da própria natureza do Homem. Gula, cobiça, ira, adultério, mentira, vaidade e hipocrisia. São tudo pecados humanos imutáveis no tempo. Já desde Adão e Eva que os humanos cometem acções moralmente incorrectas, levados pela sua natureza animal e desuso da razão ou pelas suas emoções e paixões. O mais importante não muda, apenas, com o tempo a maneira de cometer o mesmo pecado torna-se mais minuciosa e elaborada. Com todo o nosso avanço tecnológico e científico o nosso progresso moral de dois mil anos pode ser considerado nulo, pois a tecnologia abriu as novas formas de cometer os mesmos pecados mortais. Essa é uma das razões palas quais o sermão do Padre António Vieira é intemporal e actual. Outra causa desta característica também está profundamente ligada os valores morais e religiosos. Os valores católicos continuam bastante actuais, por isso, o sermão que se baseia neles também permanece actual e continua cativar a atenção do auditório. Assim, se as idiossincrasias não mudam a crítica também não muda.
No seu sermão o Padre António Vieira trata de vários assuntos curiais da sua época, pois o sermão tinha de ser actual para encontrar a compreensão nos corações dos ouvintes. No entanto de que temas trata o sermão?
Logo no exórdio, o pregador esclarece as razões pelas quais vai pregar aos peixes: a terra não se deixa salgar – os homens não querem receber a verdadeira doutrina, não agem de acordo com ela, imitam o mal exemplo e servem os seus apetites antes de seguir a palavra de Cristo. Se este comportamento humano fosse ultrapassado no nosso tempo não compreendíamos o sermão, pois não teríamos a mínima ideia de que tipo de acções moralmente condenáveis fala o Padre António Vieira. No entanto, as suas palavras encontram compreensão no nosso coração, pois todas estas situações são nós muito próximas, quase íntimas. Cada dia vemos pessoas materialistas, hipócritas e mesquinhas na televisão, nas primeiras páginas de jornais e revistas, na escola e no trabalho, e pior do que isto, podemos vê-las na nossa casa e no nosso espelho quando vamos lavar os dentes. Vivemos num mundo materialista, numa sociedade consumista. O nosso objectivo não é progredir moralmente ou espiritualmente, o nosso objectivo é comprar uma televisão LCD, ter dois carros e ser tão famoso como um jogador de futebol da Benfica. E não vale a pena dizer que 95% da população mundial acredita em Deus e que a sua vizinha D.Estefânia vai todos os domingos a missa. Por ir a um ritual religiosa a pessoa não recebe a indulgência, só é digno quem age por puro dever e de acordo com a moral e não aquele que tenta parecer bom cristão. No tempo de Vieira a população era ainda mais religiosa, mas continuavam a cometer pecados. Então não é uma questão de ser religioso? Não! É uma questão de agir de forma moralmente correcta, agir bem. E isso depende da natureza do Homem, mas como já vimos a nossa maneira de ser não muda. Exemplificando: uma pessoa encontra a carteira na rua e até sabe de que é o objecto, mas quantas pessoas é que devolviam a carteira se tinham a certeza de que ninguém as viu e ninguém as punia se levassem o dinheiro da outra pessoa? E quantas pessoas diriam a verdade se isso prejudicasse os seus interesses? Raras, raras são as pessoas honestas e imparciais. Tanto no passado como na actualidade a norma é não ser honesto. Já o próprio Vieira dizia: “…antes bastava ser português e agora tem-se de ser um santo…”. É por ter essa visão que transcendia a sua época que o Padre António Vieira era considerado um visionário.
E se nada muda, se não há uma evolução moral é porque as pessoas não querem ouvir e não querem seguir o que é moralmente correcto. Maior parte de nós raramente sacrifica os seus interesses para ajudar os outros ou para agir de modo moralmente correcto se isso, mais uma vez, não lhes favorece.
Relembrando, a sociedade da época de Vieira era uma sociedade de colonos e colonizados. Deve-se notar que a colonização de territórios brasileiros não foi muito pacífica para os índios, antes pelo contrário, era destruidora para a sua cultura e liberdade. Os colonos tentaram explorar os povos nativos da América do Sul, pois era uma mão-de-obra muito mais barata do que os escravos negros. Então, é assim que começou a escravização dos índios. Embora existiam leis que restringiam as condições para escravização de índios os colonos raramente as cumpriam e os governadores estavam em conivência com eles. Assim, mais uma vez o povo mais desenvolvido tecnologicamente acabou por oprimir e destruir a civilização dos índios. Comparando com a actualidade podemos verificar que a atitude de humanos não mudou, pois basta vez o que acontece aos povos menos desenvolvidos ou aos aqueles que perderam a guerra. Os grandes comem os pequenos – os países mais poderosos exploram os menos desenvolvidos. Os países desenvolvidos exploram os recursos naturais dos países em desenvolvimento, criando uma pobreza ainda maior. Num plano menor, as grandes empresas acabam com as pequenas, e os mais ricos ganham as suas fortunas a custa dos mais pobres e não dos outros ricos. Tudo tal como o padre vieira dizia.
Outro problema é que as pessoas sempre tinham o medo, e como a consequência o ódio, de tudo que diferente, estranho e incompreensível para eles devido a sua ignorância. O racismo não é um problema do século XX e XXI, já no tempo de vieira relevava-se na relação entre os colonos e os colonizados. No tempo de Vieira ainda existia a escravatura, os africanos e os índios eram consideradas as pessoas da classe mais baixa, ou até animais e objectos. Podiam ser vendidos, explorados, assassinados sem ninguém os defender, só porque eram da outra raça. Como os europeus pensavam a sua raça era inferior a raça europeia, só por não terem a tecnologia tão desenvolvida ou por terem costumes que pareciam bárbaros aos colonizadores. Mas nada disto faz com que eles deixam de ser seres humanos, com alma, razão e consciência. Não é a aparência que faz do Homem um ser racional, mas sim o modo como ele age. E deste ponto de vista, quem são os verdadeiros animais cruéis são os colonizadores que tentam justificar os seus crimes pela aparente ignorância dos índios.
Infelizmente, o racismo é um fenómeno prolongado. Para compreender isso basta considerar alguns factos históricos. Um dos exemplos é a postura dos romanos perante os outros povos. Os romanos consideravam que eles eram superiores aos outros povos, e tornavam o seu desenvolvimento científico, cultural e tecnológico a causa de discriminação e de racismo. No século XX, o racismo foi uma das causas da maior tragédia da toda a história da humanidade – da Segunda Guerra Mundial. Só por serem consideradas inferiores milhões de pessoas foram torturadas e assassinadas de maneiras mais cruéis pelos nazis. A discriminação das pessoas africanas, asiáticas ou árabes continua a existir ainda hoje.
Como já vimos, o racismo que foi denunciado pelo António Vieira, não tanto no Sermão de Santo António aos peixes, como em outras obras que ele escreveu não é um fenómeno restrito e isolado, mas uma realidade bastante actual.
As pessoas não devem de se esquecer que não são melhores aos outros só por terem características físicas mais apreciadas pela sociedade em que vivem, isso são apenas estereótipos que não importam, o que importa é o aspecto moral. A vaidade leva as pessoas a cometer acções terríveis e injustas. E tal como o Vieira diz, não se deve tentar ser mais do que aquilo que Deus permitiu, pois as pessoas foram criadas todas iguais nos seus direitos e deveres, todas livres e racionais. Assim, o racismo é inaceitável, pois tenta passar a ideia de que uns são mais livres e mais humanos que outros. Mas ninguém gostaria de estar no lugar dos que são discriminados. E mesmo aqueles que não se preocupam com a ética devem saber que os estereótipos e as modas mudam, e um dia aquilo que era apreciado poderá ser odiado, invertendo a situação. Por isso, todos devemos seguir o velho mandamento, também conhecido como Regra de Ouro na Filosofia, “Trata o teu próximo tal como tu gostariam que te tratassem.”
Obviamente, existe o relativismo de padrões culturais, mas não podemos confundir o relativismo cultural com o relativismo moral. A cultura evolui, pois até o nosso comportamento durante as refeições actualmente é completamente diferente do comportamento dos homens há milhões de anos atrás. Isso chama-se a evolução, mas existe uma forma mais corrompida de relativismo de padrões culturais é aquele que leva ao relativismo ético e a hipocrisia. Pois, frequentemente, nós achamos que podemos cumprir as normas morais só quando isso é do nosso interesse, ou pior só cumprimos as normas sociais. “Em Roma sê romano.” Mas esse relativismo abusivo cria uma tolerância terrível. Assim, se vivemos numa sociedade em que maioria não segue as normas morais o relativismo manda seguir as tradições desta sociedade, ou seja agir mal. No entanto, isso é impensável. O relativismo não pode justificar nem acções passadas nem a hipocrisia actual, pois todos sabemos quais são os princípios éticos e todos podemos facilmente deduzir como será uma sociedade sem a moral (basta dizer que neste caso podíamos aceitar moralmente, por exemplo, o assassínio). Seria uma sociedade sem o mínimo progresso moral!
O polvo no sermão de António Vieira representa a traição, a hipocrisia e a falsidade. Este defeito dos homens é tão comum e compreensível hoje em dia que se torna banal. E tal como no tempo de António Vieira os colonos e os comerciantes consideravam que a hipocrisia e a arte de enganar (eles tornaram isso quase uma arte) eram usadas para conseguir obter mais lucro, enganando os outros, hoje em dia os políticos e os grandes homens dos negócios fazem o mesmo. Por isso, este pecado já é tão nós familiar que não vale a pena comenta-lo, pois os exemplos estão a nossa volta, mas talvez vela a pena relembrar aos que se esqueceram que não é uma norma comportamental, é um PECADO.
A cobiça está fortemente ligada à exploração dos mais pobres e mais desprotegidos. A nossa sociedade é uma sociedade consumista o que automaticamente faz dela um mundo de materialismo. Mas se no século XVIII a pessoa era “moída” logo após a morte, actualmente as pessoas são moídas ainda vivas. Quantos são explorados pelos empresários nos países do terceiro mundo, e quantos são explorados pelos esposos e esposas, e pelos filhos e pela própria família? Inúmeros.
Este sermão não só é valioso pelo seu conteúdo como também pode ser apreciado pela forma. No Barroco a produção parenética era abundante, mas tal como o próprio estilo Barroco os sermões frequentemente continham um discurso difícil e exuberante, carregado de palavras complicadas, mas frequentemente com pouca lógica e de difícil compreensão. Mais uma vez devemos elogiar o Padre António Vieira, pois ele conseguiu fazer um sermão bastante compreensível, embora rico em termos de conteúdo, inteligente na maneira como irónica e critica a sociedade através de uma alegoria e abundante em termos de recursos estilísticos como metáforas, comparações, aliterações, enumerações, ironias e interrogações retóricas. O autor construiu o sermão para este cativar a atenção, lembrando-se das pausas, entoações e mudanças de ritmo que enriquecem o discurso e não o tornam monótono. É um texto que impressiona também pela forma como está escrito.
Os objectivos do sermão é ensinar, deleitar (agradar) e persuadir (converter) – “docere, delecter, mover”. Como já foi visto o sermão deleita o ouvinte com a forma como está escrito. E como é um texto rico em forma e, principalmente, em conteúdo, tratando de problemas que tocam o publico. Pode ser considerado uma crítica construtiva, pois crítica o Mal e mostra os bons exemplos, elogiando o bem, logo ensina os ouvintes a verdadeira doutrina. Finalmente, o sermão é um discurso retórico e por isso tenta persuadir o s ouvintes. Não nós podemos esquecer que as palavras têm um poder terrível, podem salvar a vida quando dão esperança, podem tornar cada um a pessoa mais feliz do mundo, por exemplo, quando uma mãe houve a primeira palavra do seu filho ou quando ouvimos da pessoa que mais gostamos – “Eu amo-te.”. No entanto, a palavra pode ferir pior que uma espada, pois conhecemos bem os casos do quotidiano, e mesmo os factos históricos quando um exército invade um país porque alguém disse que esse país vai usar armas químicas contra os outros, embora não se tem provas, ou quando alguém recebe o premio Nobel da Paz só pelas belas promessas. E não é preciso ir muito longe, um discurso retórico persuasivo pode levar a uma guerra, a uma revolução ou a uma catástrofe económica. Incrivelmente, é mais difícil converter as pessoas de modo a seguiram o Bem do que convencer escolher o Mal. Mesmo assim, o discurso do padre António Vieira é uma forte crítica social, e uma das provas que converteu alguém é o facto de ser ainda dada na escola e de ser considerada um exemplo a seguir.
Como já foi visto, O Sermão de Santo António aos Peixes declamado pelo Padre António Vieira é uma crítica social que permanece actual e, provavelmente, continuará fazer sentido nos próximos anos. Pois é um texto que trata de valores éticos que são intemporais e imutáveis, e da própria natureza humana que mantém se inalterável.
Concluindo, se alguém me perguntar se o sermão é actual hoje em dia eu direi que é ainda mais adequado para a situação actual do que para a do século XVIII, pois a nossa sociedade está ainda mais corrupta do que a sociedade da época de Vieira. É porque há poucos sermões hoje em dia estamos nesta situação, pois raramente ouvimos as vozes que nos criticam, preferindo escutar aqueles que nos elogiam e deleitam, esquecendo que muitas vezes acabam por explorar-nos e levar a morte como as sereias levavam os marinheiros. E se alguém não compreender a mensagem moral não é porque o sermão é de difícil compreensão, é porque não quer ouvir, ou porque desaprendeu pensar limitando-se a engolir toda a informação que vem de Internet e da televisão. Esperemos que não seja porque não consegue compreender a essência deste texto – o facto de os pecados serem moralmente inaceitáveis – pois isso significava que a imoralidade tornou-se uma norma.


Anastasiya Strembitska