sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Deus joga aos dados! (O dilema do Gato de Schrödinger)



A
té ao século XX no mundo científico predominava o paradigma de um Universo determinista. Pensava-se que tudo no nosso mundo era determinado pelo princípio de causalidade, ou seja, para cada acontecimento acreditava-se existir sempre uma causa: em última análise podia ser Deus o responsável, na perspectiva religiosa, ou as causas primeiras que deram origem ao nosso Universo, como o Big Bang. Por exemplo, usando as leis de Newton e as leis de Kepler[1] se soubermos as posições e velocidades do Sol e outros planetas num dado instante, podemos prever a posição de um planeta dentro do Sistema Solar em cada instante do seu período de translação. Esta teoria determinista teve um grande apoio, dado que se acreditava na existência do planeta Neptuno antes da sua descoberta por Johann Gottfried Galle[2], em 1846, que o viu pela primeira vez através de um telescópio. Realmente, a descoberta de Neptuno foi prevista através de cálculos matemáticos de Urbain Le Verrier[3], ou seja, respeitando o princípio de causalidade necessária. Até meados do século XX algumas das mentes mais brilhantes do horizonte da ciência apoiavam a ideia de um mundo totalmente determinista, onde não havia lugar para o acaso. A título de exemplo, refira-se Albert Einstein, que sempre acreditou que se algo parece ser aleatório, é porque existe uma causa desconhecida que determina o resultado de uma experiência ou um acontecimento. Costuma-se citar uma frase célebre do pai da Teoria da Relatividade: “Deus não joga aos dados”. No entanto, no início do século passado surgiu uma nova teoria que alterou a nossa perspectiva do Universo.
Hoje em dia sabe-se que o universo dos átomos é governado pelo Princípio da Incerteza. No mundo da Física Quântica tudo é incerto, desde a dualidade onda – partícula (ou onda – corpúsculo) até à estrutura do átomo. Houve necessidade de abolir alguns princípios lógicos básicos do nosso pensamento para compreender o enigmático mundo das nanopartículas!
No final do século XIX a Física Clássica respondeu a quase todos os enigmas da Natureza: com a termodinâmica, a mecânica newtoniana e o electromagnetismo de Maxwell. O Universo deixou de parecer misterioso. Faltava resolver apenas dois “pequenos problemas”: o enigma do corpo negro, que levou à introdução da constante de Planck, e o problema da experiência de Michelson e Morley[4], que pôs em causa a existência do éter (uma substância que servia de meio para as ondas luminosas (Klein, 1996)). Deste modo, pensava-se que com as teorias científicas existentes nessa altura conseguia explicar-se qualquer fenómeno. No entanto, quanto maior é a ignorância maior é ilusão! Com o tratamento das duas pequenas “nuvens negras” levantaram-se novos dilemas e houve necessidade de criar novas teorias para explicar o enigmático mundo que nos rodeia. Assim, surgira as Teorias da Relatividade Restrita e Geral de Einstein e a Mecânica Quântica. Ambas assentes em novos paradigmas que punham em causa o panorama da Física clássica.
Analisemos o problema de um corpo negro – um emissor perfeito. Acreditava-se que um corpo quente emitia ondas electromagnéticas em quantidades idênticas em todas as frequências. Ou seja, o corpo emitia igual quantidade de energia em ondas de frequência alta e em ondas de baixa frequência. Rayleigeh e Sir James Jeans[5], baseando--se nesta teoria científica do final do século XIX, concluíram que um corpo quente devia irradiar quantidades ilimitadas de energia, uma vez que não existe limite para a frequência. Ora, essa conclusão era absurda! Como resposta a esse problema, Max Planck enunciou uma hipótese que dizia que as ondas electromagnéticas, como os raios-X, não podiam ser emitidas em quantidades arbitrárias (Hawking, 2009). Seguindo a ideia de Planck, a energia só podia ser emitida em quantidades pequenas e bem definidas. Estas doses de energia passaram a chamar-se quanta[6]. Deste modo, o cientista efectuou uma quantização de energia que mais tarde foi aplicada ao átomo, pois os átomos podem receber e irradiar a energia apenas numa quantidade finita e quantizada, ou seja, em forma de quanta. Cada quantum teria uma energia tanto maior quanto mais alta fosse a frequência. Isto implicava que uma frequência muito alta necessitava de mais energia do que aquela que se encontrava disponível para a emissão de um único quantum de energia. Esta energia não podia ser emitida aleatoriamente, logo, haveria limite para a emissão de energia.
Com a quantização de energia os físicos perceberam que os átomos só recebem e emitem certas quantidades de energia na forma de radiação electromagnética - isto está relacionado com as energias dos níveis electrónicos que também não são arbitrárias. Com o conhecimento desta propriedade do átomo, um cientista alemão, Werner Heisenberg, tentou medir a posição e a velocidade do electrão no átomo. Para isso incidiu luz na partícula e, uma vez que algumas ondas são dispersas pelo electrão, Heisenberg conseguia saber a sua posição. No entanto, não se podia usar uma quantidade muito pequena de energia, devia-se usar pelo menos um quantum - isto implicava que ao incidir na partícula iria alterar a velocidade inicial do electrão o que não permitia a medição da velocidade inicial. Simultaneamente, não podemos saber com certeza a posição e a velocidade do electrão no átomo, quanto mais preciso for o valor da posição, maior será o erro do valor da velocidade e vice-versa. Surge assim uma base fundamental para a compreender o mundo das nanopartículas: o Princípio de Incerteza de Heisenberg!
O problema da medição é inevitável. Talvez seja a única lei fatal que rege o nosso mundo. Quando tentamos medir o estado de um sistema, a nossa medição altera o seu estado original, ou seja, qualquer medição, enquanto uma intervenção na experiência, introduz uma perturbação nas condições iniciais. Assim, sempre que observamos um sistema, ou seja, medimos o seu estado, introduzimos um erro nas nossas medições (Croca, 2004), pois, enquanto observadores imperfeitos, não conseguimos observar um sistema sem o alterar. É a mesma coisa que cultivar uma planta sensível à luz numa caixa escura e de vez em quando abrir a caixa para verificar o estado da planta. Infelizmente, cada vez que abrimos a caixa deixamos que a planta entre em contacto com os raios luminosos que alteram o seu crescimento, não sabemos o quão profunda é alteração das condições iniciais mas temos a noção de que interferimos no crescimento da planta. Cada um de nós poderá perceber que a medição ou observação altera as condições do sistema e, portanto, os resultados. Se alguma vez participou num torneio desportivo ou efectuou um exame teórico na escola teve a sensação de que o facto de a pessoa estar a ser observada pode provocar stress e alterar os seus resultados. Obviamente, no caso dos humanos tem a ver com questões psicológicas que são remediáveis, mas o mesmo não acontece com as nanopartículas.
O Princípio de Incerteza é fundamental para perceber a física dos átomos e, como uma consequência inevitável, o funcionamento de toda a matéria que nos rodeia e até a bioquímica do nosso próprio corpo.
Esta nova ideia de incerteza levou três cientistas, Werner Heisenberg, Erwin Schrödinger e Paul Dirac, à reformulação da física clássica numa nova teoria – Mecânica Quântica, que acabou com o paradigma determinista. Numa experiência existem vários resultados possíveis, a mecânica quântica prevê os resultados possíveis a as suas probabilidades. Como os alunos da disciplina de Física e Química do 10ºAno já sabem, na perspectiva desta teoria, os electrões não têm órbitas definidas mas sim uma zona de espaço onde a probabilidade de encontrar um electrão é superior a 95%. – a orbital. Teoricamente, nenhum acontecimento é impossível. No entanto, este paradigma tem outras implicações muito mais profundas que contrariam os nossos princípios lógicos. A hipótese de Planck e a conclusão de Heisenberg demonstraram que as ondas podem comportar-se como partículas e as partículas como ondas (Hawking, 2009). Esta dualidade onda-corpúsculo, visível no efeito fotoeléctrico, foi pela primeira vez enunciada por Louis-Victor de Broglie. É um dos paradoxos que fez os cientistas repensarem a física newtoniana e a lógica aristotélica usada até então.
A experiência do Gato de Schrödinger vai contra o princípio lógico básico da lógica aristotélica que usamos no quotidiano - o princípio de não-contradição. O princípio de não-contradição (pode também ser designado pelo princípio de contradição) consiste na ideia de que duas realidades contraditórias não podem coexistir. Para evitar oximoros e paradoxos lógicos não podemos afirmar, por exemplo, que algo existe e não existe simultaneamente, ou que um animal está vivo e morto. Deste modo, duas proposições contraditórias são simultaneamente verdadeiras. Do ponto de vista da lógica aristotélica, só pode estar ou vivo ou morto, tratando-se de um silogismo disjuntivo em que nenhum dos elementos pode coexistir com o outro, sendo que as duas realidades se excluem mutuamente. Para entender o mundo das nanopartículas e das ondas, a Mecânica Quântica estudada-as apoiando-se na onda-corpúsculo, abandonando as convicções da lógica aristotélica. Assim, nos meados do século passado surgiu a lógica paraconsistente que não respeita o princípio de não-contradição e admite que existem vários resultados possíveis dando uma probabilidade para cada um dos resultados. A dificuldade de compreensão da Mecânica Quântica é a necessidade de abstracção e de abandono de princípios lógicos aparentemente dogmáticos.

Concluindo, podemos dizer que a Mecânica Quântica alterou não só a perspectiva científica do Universo, mas também a nossa maneira de pensar e o nosso quotidiano. A alteração de paradigma científico permitiu a solução de vários problemas e abriu o caminho para um novo tipo de tecnologia, permitindo a construção de lasers, transístores, microscópios electrónicos e obter imagens de ressonância magnética. O caminho para uma inovação científico-tecnológica passava pela incerteza.
Desde o momento em que o Universo deixou de ser governado pelas leis deterministas dando o lugar ao acaso, surgiu a incerteza, que pode ser vista como uma forma de liberdade. A inevitabilidade da incerteza pode ser benéfica, pois proporciona-nos a liberdade de escolha – o livre arbítrio. Se não existe nenhuma causa fatal que determine as nossas escolhas, então podemos ser livres nas nossas decisões.
“A incerteza é uma propriedade inevitável do mundo.”
Stephen Hawking, in Breve História do Tempo (2009)
Nem sempre a incerteza significa “a dúvida”, por vezes é a liberdade - uma forma de ir mais longe, não nos limitando a dogmas e restrições. De facto, na ciência não existem verdades absolutas e teorias imutáveis. Para a mente humana a inevitabilidade da incerteza parece ser paradoxal. No entanto, a física quântica não difere muito do pensamento do grande filósofo grego, Sócrates: “Só sei que nada sei” (apud Platão, in Apologia de Sócrates). O facto de reconhecermos a nossa ignorância ou a incerteza já nos torna, na verdade, mais sábios do que éramos se vivêssemos na ilusão. O constante avanço da Mecânica Quântica é essencialmente a compreensão da complexidade e da imprevisibilidade do Universo.
A.S.


[1] Leis de Kepler (1605) – uma série de princípios que explicam o movimento de corpos celestes, como os planetas do Sistema Solar.
[2] Johann Gottfried Galle – astrónomo que pela primeira vez viu o planeta Neptuno.
[3] Urbain Le Verrier – foi um matemático e astrónomo francês. Baseando-se na lei de gravitação universal e leis de Kepler calculou com erro de 1% a órbita de Neptuno.
[4] Experiência que provou que a velocidade da luz tem mesma velocidade em todas as direcções, o que significava que não é necessário um meio para propagação de ondas luminosas – éter.
[5] A lei de Rayleigh-Jeans – lei proposta no início do século XIX, descreve a radiação electromagnética de todos os comprimentos de onda irradiada por um corpo negro a uma dada temperatura.
[6]Quanta - forma plural de quantum, do latim “quantia”.