"Quanto
maior o poder, mais perigoso é o abuso.”
(Edmund Burke,
s.d.)
O século XXI é o tempo
de grande expansão e globalização tecnológica. Se no século passado o planeta
passou por duas guerras mundiais, descoberta de energia nuclear e Guerra Fria,
agora assistimos a enorme comercialização e aplicação de altas tecnologias.
Computadores portáteis da espessura de um livro, turismo espacial, engenharia
genética e Large Hadron Collaider não
são mais que a realidade do quotidiano que vemos todos os dias ao nosso lado e
nos mass-media. Todos estes avanços
científicos e tecnológicos estão integrados na nossa vida - abrem novos
horizontes e fornecem novas oportunidades. É o tempo dos investigadores que “Novos mundos ao mundo irão mostrando”
(Luís Vaz de Camões). O mundo não é só o que vemos com os nossos olhos, mas é o
que as lentes do microscópio e telescópio, as câmaras de vídeo, os computadores
e as sondas espaciais nos permitem ver. Do ponto de vista epistemológico, o
Universo expandiu-se colossalmente – estende-se do átomo até às galáxias
distantes, da célula à biosfera, do microprocessador até ao space shuttle.
Neste novo “habitat” o
Homem tem oportunidade de intervir em processos naturais e reproduzi-los in vitro ou in silico. No entanto, entre as outras descobertas científicas
destacam-se duas que são cruciais para a humanidade: a descoberta do poder do
átomo (a energia nuclear) e do ADN, “molécula-base” da vida, por James Watson e
Francis Crick. Esta última talvez seja de maior importância porque não é apenas
um instrumento de destruição, como uma arma atómica, mas de criação e manipulação
da vida. Nestas condições surgiu a Engenharia Genética, que estuda o nível
fundamental da organização dos seres vivos, o conjunto de moléculas que
determinam morfologia e fisiologia de qualquer organismo.
Hoje em dia é frequente
ver notícias sobre avanços de genética. Ninguém fica surpreendido quando os
cientistas mostram ao grande público os últimos resultados das suas experiências,
como é o caso da famosa ovelha Dolly ou do milho transgénico. Na realidade já é
possível clonar cães, gatos e outros animais. No futuro mais próximo podem
surgir clones de animais que foram extintos na Natureza, por exemplo, mamutes.
Ao nível de genética terapêutica existem laboratórios que estudam as doenças
genéticas do ser humano e fazem análises de ADN até de seres humanos que estão
no estádio mais básico da sua existência e existem apenas como embriões nas
placas de Petri. As possibilidades da genética são espantosas, dá-nos o poder
sobre a vida, tornando-nos quasi
deuses, mestres do mundo material capazes de manipular os seres vivos e as suas
características.
Desta forma, os avanços
da Genética fornecem conhecimentos importantíssimos que se aplicam na medicina.
O diagnóstico e o tratamento das doenças são facilitados, podemos detectar as
mutações perigosas mais cedo e reprimir a expressão de gene com fármacos,
melhorando significativamente a qualidade de vida de pessoas. Todavia, a
engenharia genética levanta grande polémica entre especialistas, pessoas
religiosas e cidadãos comuns, pois implica a intervenção no genoma e nos
processos que determinam a nossa existência e individualidade. Há também
questões muito controversas, como a clonagem reprodutiva do ser humano e
eugénia, selecção genética de seres humanos.
Pois, quanto maior é o
poder, maior é a tentação. O Homem consegue manipular as características de
plantas e animais, criar novas espécies, os chamados organismos geneticamente
modificados, melhorando as características dos mesmos. No entanto, como qualquer
ser ambicioso e limitado pela sua ignorância, o ser humano não perde a
oportunidade de tentar enganar as leis naturais e corrigir os erros da
Natureza. Assim, graças aos avanços científicos, em 2009 nasceu a primeira bebé
britânica seleccionada para não carregar um dos genes que predispõe o
desenvolvimento do cancro da mama e do útero. O caso é exemplificativo e
controverso do ponto de vista ético, pois a futura criança tinha uma elevada
probabilidade de sofrer de cancro da mama ou do cancro do útero e por isso os
pais recorreram a selecção genética dos embriões durante a fertilização in vitro. Este acontecimento levou a uma
grande polémica na sociedade ocidental. A Igreja católica considera a selecção
genética uma acção “grave e ilícita” e os defensores do método sustentam que os
futuros bebes têm uma vida mais saudável, ficando privados do sofrimento que as
patologias genéticas causam.
De facto a Igreja nunca
aceitou qualquer tipo de intervenção genética com o fim de alterar os processos
naturais, isto é, a clonagem, engenharia genética e selecção genética são
considerados actos imorais e que violam o direito sagrado de cada ser humano, a
vida e a individualidade e põem em causa a vontade divina. Do ponto de vista da
Igreja, a selecção genética dos embriões que não apresentam genes que provocam
o desenvolvimento de uma doença é uma atitude tão grave como o aborto e a
eutanásia, pois provocam a morte de um ser humano inocente. Os embriões nos
primeiros estádios do seu desenvolvimento passam por um diagnóstico genético
durante o qual são evidenciados os genes malignos, o embrião que não é portador
destes genes é seleccionado para a implantação para o útero da mulher e os
restantes são eliminados. A religião católica não só o caracteriza como um
homicídio, mas também aponta para que o Homem assume o papel de Deus, escolhendo
entre dar vida ou retirá-la.
Em contrapartida, temos
a posição dos que defendem que o novo ser humano será mais saudável.
Obviamente, é indiscutível que as pessoas saudáveis são normalmente mais
felizes, uma vez que as suas famílias não têm de enfrentar a terrível luta
contra uma doença grave e mortal. É uma posição tipicamente utilitarista,
quando o eticamente correcto é o que evita maior sofrimento e causa maior
felicidade. A questão fundamental é se a selecção genética é uma ferramenta
segura e se podemos confiar no ser humano, capaz de errar e quebrar as regras
éticas.
Realmente, com a
engenharia genética é possível examinar todo o genoma e escolher o sexo, a cor
dos olhos ou a sua estatura. Se esquecermos as normas éticas podemos modelar
completamente o aspecto dos nossos futuros filhos, criar em laboratório
gerações sem defeitos físicos e doenças. Hoje, como nunca antes, estamos perto do
sonho de Hitler - a criação de uma raça perfeita. Contudo, os genes não
determinam tudo, não há garantia de que o mais perfeito dos embriões será um campeão
olímpico ou génio, tal como não podemos programar a bondade e a piedade nos
seres humanos. Estas qualidades não se cultivam em proveta!
De facto, “de boas
intenções está o Inferno cheio”. Quem age a pensar num bem universal para toda
a humanidade pode fornecer uma arma horrível aos seres humanos mais corrompidos
pelo poder e, neste caso, o feitiço vira-se contra o feiticeiro. A engenharia
genética é apenas uma ferramenta poderosa, obra do génio humano, e tal como
qualquer instrumento, pode ser usada para o bem ou para o mal. Como o bisturi é
uma arma mortal nas mãos do criminoso e salva vidas nas mãos do cirurgião. Os
objectos e o conhecimento só por si não possuem nenhum valor moral, apenas as
acções humanas são contabilizadas pela ética. O perigo está na própria natureza
do Homem, ser mortal e ignorante, vulnerável às tentações deste mundo.
Infelizmente, não há maior tentação do que o Poder.
Já o antigo Sófocles
afirmara - “O poder revela o homem.”.
Raros são os homens que por natureza são determinados, capazes de resistir ao
poder. A maioria abusa do poder a seu favor, e quanto maior é o poder, maior é
o abuso. É a natureza do ser humano, o desejo de poder está em nós como em
qualquer animal colectivo. Nos leões, nos lobos e nos homens reinam os mesmos
instintos, pois somos mais animais do pensamos e a parte racional da nossa
mente é menor do que podemos imaginar. Os exemplos são abundantes - os
ditadores, os políticos corruptos, as companhias multinacionais que exploram
terras dos países em desenvolvimento e ganham o dinheiro do trabalho infantil,
até os maridos que praticam violência doméstica, todos são pessoas que abusam
do poder. O mais forte, que tem o poder sobre os mais fracos e os mais
vulneráveis, pode ser corrompido pela sensação da sua soberania e omnipotência,
tornando-se egoísta e desvalorizando a integridade e a individualidade dos
outros. O ser humano, quando não condicionado pelo contrato social, pelas
normas morais e leis, inferioriza os mais frágeis. O poder é o vinho – o vício
que releva os nossos instintos animalescos, e tal como o ópio, encanta-nos e
transforma o mundo à nossa volta num jogo onde as vidas humanas são apenas peças
do jogo sobre as quais temos um controlo total. É uma forma efémera de realizar
os nossos próprios desejos, de nos tornarmos deuses e provarmos a nos próprios
que somos mais do que seres mortais cuja existência é insignificante e inútil à
escala do Universo. Elevar-se sobre os outros é uma prova de existência a nós
próprios e uma expressão da vontade eterna do Homem de atingir a perfeição,
algo divino.
Em suma, a selecção genética pode
ser uma prática amoral, pois pode ser uma tentativa terrível de o ser humano se
igualar a Deus. O conhecimento é poder na sua essência e um cientista sapiente
pode ser mais perigoso do que um ditador. Quando os pais recorrem à selecção de
embriões, parece uma atitude egoísta; evidentemente, eles valorizam mais os
seus desejos do que a vida de um ser humano. O mesmo ocorre quando o Governo
autoriza o aborto selectivo ou a selecção genética ao nível institucional, pois
parece evidente que o Estado persegue o interesse económico – afinal uma
população mais saudável é favorável para o desenvolvimento de qualquer país.
Assim, parece que é um acto de egoísmo, individual e colectivo. O perigo surge
quando a selecção de embriões não é determinada pelas razões meramente médicas
mas sim pelos desejos egoístas de quem manipula os seus genes.
Ainda parece aceitável prevenir o
sofrimento de um ser humano e dos seus familiares se a probabilidade de
aparecimento de uma doença grave e sem cura for muito elevada. A decisão é dos
pais e dos médicos, mas esta atitude só pode ser tomada nos casos extremos, caso
contrário corremos o risco de discriminação de seres humanos por serem de um
dos sexos ou por terem determinadas características, como a cor dos olhos. Será
a discriminação dos mais fracos, que não podem protestar e que são excluídos a priori, ainda antes de vir para este
mundo. Assim, a selecção genética tem de ter limites e, por sua vez, devem
existir leis que asseguram todos os direitos humanos tendo em conta o
desenvolvimento da engenharia genética.
Este é apenas um dos problemas da
imparável evolução da ciência e da tecnologia, que levam ao aparecimento de
novas oportunidades e, infelizmente, novos crimes. Muitas vezes, a humanidade
ultrapassa o limite da ética quando persegue objectivos económicos ou
científicos. O bom senso não funciona quando aparece a oportunidade de fazer
papel de Deus. Com o nosso desenvolvimento científico elaboramos meios para
criar a vida e destruir planetas – aproximamo-nos do potencial de um ser
divino. No entanto, este super-homem sonhado por Nietzsche pode tornar-se um
animal cruel, desprovido de qualquer princípio moral, se não encontrar uma
simbiose para a dicotomia existente entre o poder e a ética.
O ser humano
assemelha-se ao demiurgo, uma entidade criadora do mundo material, que possui
sabedoria imperfeita. No entanto, seria pouco sensato pensar que um ser
imperfeito não irá cometer erros. Jogamos no jogo de Deus com a ambição de não
cair no abismo.
Pseudónimo: Belerofonte
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